terça-feira, 15 de março de 2011

Da inescusável decoreba exigida nas provas



Nenhum professor quer ouvir que, para aprender a sua matéria, seu aluno teve que recorrer à decoreba. Por isso, uma aula antes da prova, em suas preleções e advertências sobre a avaliação que está por vir, é tão comum ouvi-los afirmar que não adianta decorar a matéria, que é preciso, antes de tudo, aprendê-la.

Ora, até entendo tal preocupação quando ela se refere a um certo tipo de decoreba, aquela que o aluno sequer sabe o que memorizou. Vamos chamá-la de "má decoreba". Ninguém questiona a vocação nociva e inútil desse tipo de processo mental. Por exemplo, aquele que responde na prova que o "infanticídio é um crime próprio, monosubjetivo, simples, que admite as modalidades comissiva e omissiva, além da conatus, etc.". Se ele não sabe o que cada uma destas classificações quer dizer, a rigor, não aprendeu nada. Este seria um exemplo de má decoreba.

Contudo, digamos que estudando os sistemas de apreciação de provas, no Processo Penal, o aluno se depare com alguns sistemas: o étnico, os ordálios e o sistema tarifado. Se ele memoriza o nome de tais sistemas e consegue se expressar nos seguintes termos: são, respectivamente, aquele em que as provas são apreciadas ao sabor das impressões do juiz, em que o julgamento divino é usado como critério de definição da culpa e em que as provas têm valor predefinidos em lei; temos, então, uma boa decoreba. O aluno compreendeu o sentido das expressões, ainda que obrigado a memorizá-las. De certa forma, foi forçado a guardar, também, expressões como "impressões do juiz", "julgamento divino" e "valor predefinido em lei". A diferença com a má decoreba é que, além de registrar as informações, o aluno conseguiu, também, estabelecer uma certa conexão semântica entre elas.

Levando nosso questionamento mais adiante: pense no fato de que esse processo de gravar tais informações se dá, em boa parte do nosso estudo do Direito, na chamada memória de curta duração (ou memória de trabalho). Tal como um bilhete, em que anotamos um telefone de uma loja e que, após o uso, pode ser descartado, a memória de trabalho joga na lixeira boa parte das informações memorizadas após a resolução da prova. Assim, me pergunto se seria razoável exigir de um aluno normal (esforçado e dedicado), sem nenhum tipo de convivência com o ambiente forense, onde esse tipo de informação é vivenciada na prática, aprender sobre os sistemas de apreciação de provas – ou qualquer outro conteúdo do Direito – sem decoreba.

É claro que temos o caso das pessoas com grande capacidade de memorização, alguns até com memória fotográfica. São, entretanto, exceções à regra. Seria estranho qualquer estratégia de ensino superior que estabelecesse como média desejável a capacidade de uma pessoa com este tipo privilegiado de memória. Na expressão "nivelar por cima", o "por cima" não pode significar "nível de inteligência" ou "capacidade de memória", mas, quando muito, "nível de esforço e dedicação".

Retomando nosso questionamento: é possível, então, uma boa decoreba? Seria conveniente que o aluno aprendesse com base na memorização de curta duração? Na hipótese de termos uma boa decoreba – além de guardar as expressões jurídicas, o aluno consegue, pelo menos até a prova, dar um sentido a estas expressões armazenadas –, teríamos aprendizado válido?

Já ouvi muito professor, no início do semestre letivo, reclamar que o aluno não sabe a matéria do semestre passado (no caso das disciplinas que exigem pré-requisito). Parece claro que o "não sabe" significa "não lembra". Mas, seria razoável exigir isso dos alunos? O professor tem o direito de cobrar do aluno conteúdos passados? Se não tem esse direito, a noção de pré-requisito faz algum sentido?

Sem pretender responder a tais questionamentos, acredito que de memorização em memorização, alguns conceitos, teorias e fatos acabam passando à chamada memória de longa duração. Hoje, no 3º período, não precisamos mais ir até o livro para saber que o crime é toda conduta típica, antijurídica e culpável, que as condições da ação são a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e legitimidade das partes, etc. Neste sentido, acredito na memorização como instrumento de aprendizado – mesmo a de curta duração. Não posso levar a sério quando um professor diz que não quer decoreba, mas quer aprendizado. Essas duas noções estão intimamente conectadas. Vejo na memorização uma ferramenta disponível e, dentro das circunstâncias, necessária.

É claro que podemos afirmar que o sistema de ensino baseado em memorização de informações é falho, não forma os alunos, privilegia um ensino instrumentalizado etc. Mas, daí temos outra discussão que certamente não será feita por este autor que vos fala neste blog...

Ricardo Orsini – ricardo.orsini@gmail.com

2 comentários:

  1. Quando digo no 3º parágrafo “o aluno compreendeu o sentido das expressões...”, na verdade essa compreensão não é definitiva. Não implica na solução final de um enigma (o que significa cada expressão), como se tivesse dado uma resposta última. Essa compreensão sempre pode ser ampliada por uma segunda leitura, pela leitura de outros textos ou pela reflexão.

    ResponderExcluir
  2. E aquelas fórmulas para memorização, do tipo: "PIL" (possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade das partes)? Ajudam? Ao recitar a fórmula, às vezes, parece que o sentido das expressões fica esvaziado.

    ResponderExcluir